quinta-feira, 2 de maio de 2013

RESENHA: Ética e história


Ética e história

SALDANHA, Nelson. Ética e história. Rio de Janeiro: Renovar, 1998.

 A discussão sobre ética tem sido uma constante na contemporaneidade. As dificuldades de se encontrar um direcionamento efetivo quanto a um procedimento eficaz, tanto em seu aspecto jurídico como em seu aspecto pedagógico, parece ser o maior desafio que se impõe à realidade.
O Professor Saldanha segue este caminho. Num profundo debate sobre a necessidade de se encontrar alternativas para concretização de um projeto ético, remete-nos a uma densa reflexão histórica e axiológica da moral tanto a nível universal quanto na sua dimensão da contextualidade brasileira.
No entender do autor “a ética corresponde ao conjunto de todas as formas de normatividade vigente nas agrupações humanas” (p.07), o que, portanto, perpassa todas as dimensões que incluem reflexão e construção de instrumentos reguladores do comportamento coletivo, tanto no que se refere aos interesses do indivíduo quanto ao que se remete ao bem coletivo. È nesta dimensão que o trabalho do jurista detém maior atenção, distinguindo questões axiológicas entre a ética clássica e a contemporânea. Verificando que, enquanto na primeira a dimensão reflexiva da ética centrava-se no bem da cidade, nos tempos atuais, em função da potência que a individualidade recebeu da modernidade, vive-se numa dificuldade de direcionamento reflexivo entre o bem comum e os direitos do cidadão.
No construir destas considerações Saldanha recupera os aspectos políticos da eticidade ao identificar que “os valores em geral – principalmente os que tangem à convivência – radicam [na] política [...] [e] no plano institucional do viver” (p. 14), ao mesmo tempo em que tece um olhar para as dimensões culturais dessa convivência. Verifica-se assim que, se é a pessoa (no sentido de sua individualidade) que vai dar a significação ao valor dessa politicidade, e se é essa pessoa (no sentido da convivência) identificada e considerada (por ela e pelo grupo) como um membro desta coletividade, há aí um dado que remete as identificações axiológicas da ética a uma dimensão cultural, pois “os valores que se atribuem à pessoa [...] são referências cuja significação objetiva se acha na dimensão institucional: língua, parentesco, ordem social, crenças” (p.14), os quais são atributos construídos a partir de referenciais culturais.
Outro aspecto trazido nesta reflexão é a existências das constantes, que são “conceitos que permanecem mesmo através de diferentes contextos culturais, [ou seja], conceitos, representações ou princípios éticos que persistem, embora, certamente, com variantes” (p.35). Valores que, passando por várias épocas, adentram diferentes contextos e diferentes culturas. Elementos de uma “moral arquetípica, [que] perpassa os povos, os tempos” (p.38) efetivando um ethos manifesto e “constante”, que, ainda com possíveis variações culturais, efetiva-se em sua intenção axiológica. Possivelmente é esse ethos universal que unifica o desejo global de manutenção da vida e da existência humana, cristalizando-se em ações como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, e mais presentemente os direitos universais das mulheres e das crianças e adolescentes.
Na passagem do antigo para novo, mesmo com a manutenção de tais constantes, a fragmentação instituída pela modernidade tem gerado uma nova instabilidade. Enquanto a “ética greco-romana revelava uma concepção hierárquica do mundo e da sociedade, da vida humana portanto; uma concepção que configurava como uma ordem montada sobre um centro divino e estável” (p.76), na ética moderna o homem se vê em crise por falta de referências, “acha-se bracejante em contextos sociais instáveis e entre valores precários” (p.76). “Com o relativismo e com a relativização fornecida pelas ciências do tipo da sociologia e psicologia, a realidade deixa de encarar-se com um todo, e as opções valorativas deixam de ser radicais; homens e sociedades passam a ser vistos sob a forma de possibilidades distintas e a ser julgados em função de alternativas mais flexíveis” (p.81).
Essa nova condição gerou outras perspectivas em relação à participação, pois o conceito de democracia dado pela polis e efetivado na intenção universal em Rousseau parece não ter se configurado na estrutura da democracia participativa, o que demanda uma nova recolocação deste valor, uma melhor equação axiológica entre o representativo e o participativo.Na antiguidade prevalecia-se o interesse do todo sobre o individual, a cultura da polis. A axiologia contemporânea ainda permanece numa dimensão entre o abstracionismo da multiplicidade e o substancialismo inerente ao desejo civilizatório, “[...] na antiguidade, com o primado do todo sobre as partes (o primado da cidade na cultura clássica) a comunidade se impunha sobre os indivíduos, com suas crenças e suas normas. Esses referenciais deixaram de ser permanentes na cultura ocidental contemporânea, [...] parece que a cultura ocidental moderna realmente se ressente do esvaziamento dos fundamentos” (p.111),
Assim sendo, na vida contemporânea parece prevalecer o pragmatismo e o hedonismo, numa utilização do direito para preservar com maior intensidade o individual e o privado em detrimento de ações que ampliem e fortalecem ações solidárias e éticas. As dimensões da crise axiológica contemporânea parecem extremar ao limite da vida, quando, nas pretensas intenções de reprodução humana, esfola-se com freqüências nas relações com a bioética.
Apenas em poucos aspectos poderíamos levar as reflexões do Professor Saldanha a questionamentos, mas, ao afirmar que “o correto agir depende do correto saber ou do correto pensar, e, portanto, toda formação ética depende de uma formação intelectual”, teríamos a impressão que o intelectual se sobrepõe ao bem. Desta forma, numa modesta intenção, acrescentaríamos a isso que o puro saber intelectual não garante uma eficiência ética, ao saber intelectual é necessário um saber reflexivo e axiológico no que se refere aos aspectos da convivência, da manutenção da vida e dos conteúdos elementares de sua manutenção.
Esse aprofundamento na ética e na história a que nos remeteu Saldanha, coloca-nos diante de um conflito ainda não resolvível. Talvez precisemos retornar aos elementos que fundaram o humanismo, o iluminismo e os princípios que edificaram a consciência histórica da modernidade e da contemporaneidade. Esquivar-se das potencialidades tecnológicas da contemporaneidade não parece ser a melhor opção. Identifica-se então, um provável redimensionamento dos valores implícitos na utilização dessas tecnologias. “O que continua necessário, certamente, é o reexame crítico destes problemas, com alusão aos valores implicados em cada posição e à relação destas com o humano. A consciência do humano (que deve fazer parte da consciência filosófica em qualquer caso) deve ser entre outras coisas, conhecimento e compreensão da história das situações do viver: do viver como experiência específica e intransferível” (p.170).“