Ética e história
SALDANHA, Nelson. Ética e história. Rio de Janeiro: Renovar, 1998.
A discussão sobre ética tem
sido uma constante na contemporaneidade. As dificuldades de se encontrar um
direcionamento efetivo quanto a um procedimento eficaz, tanto em seu aspecto
jurídico como em seu aspecto pedagógico, parece ser o maior desafio que se
impõe à realidade.
O Professor Saldanha segue
este caminho. Num profundo debate sobre a necessidade de se encontrar
alternativas para concretização de um projeto ético, remete-nos a uma densa
reflexão histórica e axiológica da moral tanto a nível universal quanto na sua
dimensão da contextualidade brasileira.
No entender do autor “a
ética corresponde ao conjunto de todas as formas de normatividade vigente nas
agrupações humanas” (p.07), o que, portanto, perpassa todas as dimensões que
incluem reflexão e construção de instrumentos reguladores do comportamento
coletivo, tanto no que se refere aos interesses do indivíduo quanto ao que se
remete ao bem coletivo. È nesta dimensão que o trabalho do jurista detém maior
atenção, distinguindo questões axiológicas entre a ética clássica e a
contemporânea. Verificando que, enquanto na primeira a dimensão reflexiva da
ética centrava-se no bem da cidade, nos tempos atuais, em função da
potência que a individualidade recebeu da modernidade, vive-se numa dificuldade
de direcionamento reflexivo entre o bem comum e os direitos do cidadão.
No construir destas
considerações Saldanha recupera os aspectos políticos da eticidade ao
identificar que “os valores em geral – principalmente os que tangem à
convivência – radicam [na] política [...] [e] no plano institucional do viver”
(p. 14), ao mesmo tempo em que tece um olhar para as dimensões culturais dessa
convivência. Verifica-se assim que, se é a pessoa (no sentido de sua individualidade)
que vai dar a significação ao valor dessa politicidade, e se é essa pessoa (no
sentido da convivência) identificada e considerada (por ela e pelo grupo) como
um membro desta coletividade, há aí um dado que remete as identificações axiológicas
da ética a uma dimensão cultural, pois “os valores que se atribuem à pessoa
[...] são referências cuja significação objetiva se acha na dimensão
institucional: língua, parentesco, ordem social, crenças” (p.14), os quais são
atributos construídos a partir de referenciais culturais.
Outro aspecto trazido
nesta reflexão é a existências das constantes, que são “conceitos que
permanecem mesmo através de diferentes contextos culturais, [ou seja],
conceitos, representações ou princípios éticos que persistem, embora,
certamente, com variantes” (p.35). Valores que, passando por várias épocas,
adentram diferentes contextos e diferentes culturas. Elementos de uma “moral
arquetípica, [que] perpassa os povos, os tempos” (p.38) efetivando um ethos
manifesto e “constante”, que, ainda com possíveis variações culturais,
efetiva-se em sua intenção axiológica. Possivelmente é esse ethos universal
que unifica o desejo global de manutenção da vida e da existência humana,
cristalizando-se em ações como a Declaração Universal dos Direitos Humanos,
e mais presentemente os direitos universais das mulheres e das crianças e
adolescentes.
Na passagem do antigo para
novo, mesmo com a manutenção de tais constantes, a fragmentação
instituída pela modernidade tem gerado uma nova instabilidade. Enquanto a
“ética greco-romana revelava uma concepção hierárquica do mundo e da sociedade,
da vida humana portanto; uma concepção que configurava como uma ordem montada
sobre um centro divino e estável” (p.76), na ética moderna o homem se vê em crise
por falta de referências, “acha-se bracejante em contextos sociais instáveis e
entre valores precários” (p.76). “Com o relativismo e com a relativização
fornecida pelas ciências do tipo da sociologia e psicologia, a realidade deixa
de encarar-se com um todo, e as opções valorativas deixam de ser radicais;
homens e sociedades passam a ser vistos sob a forma de possibilidades distintas
e a ser julgados em função de alternativas mais flexíveis” (p.81).
Essa nova condição gerou
outras perspectivas em relação à participação, pois o conceito de democracia
dado pela polis e efetivado na intenção universal em Rousseau parece não
ter se configurado na estrutura da democracia participativa, o que demanda uma
nova recolocação deste valor, uma melhor equação axiológica entre o
representativo e o participativo.Na antiguidade prevalecia-se o interesse do
todo sobre o individual, a cultura da polis. A axiologia contemporânea
ainda permanece numa dimensão entre o abstracionismo da multiplicidade e o
substancialismo inerente ao desejo civilizatório, “[...] na antiguidade, com o
primado do todo sobre as partes (o primado da cidade na cultura clássica) a
comunidade se impunha sobre os indivíduos, com suas crenças e suas normas.
Esses referenciais deixaram de ser permanentes na cultura ocidental
contemporânea, [...] parece que a cultura ocidental moderna realmente se
ressente do esvaziamento dos fundamentos” (p.111),
Assim sendo, na vida
contemporânea parece prevalecer o pragmatismo e o hedonismo, numa utilização do
direito para preservar com maior intensidade o individual e o privado em
detrimento de ações que ampliem e fortalecem ações solidárias e éticas. As
dimensões da crise axiológica contemporânea parecem extremar ao limite da vida,
quando, nas pretensas intenções de reprodução humana, esfola-se com freqüências
nas relações com a bioética.
Apenas em poucos aspectos poderíamos levar as
reflexões do Professor Saldanha a questionamentos, mas, ao afirmar que “o
correto agir depende do correto saber ou do correto pensar, e, portanto, toda
formação ética depende de uma formação intelectual”, teríamos a impressão que o
intelectual se sobrepõe ao bem. Desta forma, numa modesta intenção,
acrescentaríamos a isso que o puro saber intelectual não garante uma eficiência
ética, ao saber intelectual é necessário um saber reflexivo e axiológico no que
se refere aos aspectos da convivência, da manutenção da vida e dos conteúdos
elementares de sua manutenção.
Esse aprofundamento na ética e na história a que
nos remeteu Saldanha, coloca-nos diante de um conflito ainda não resolvível.
Talvez precisemos retornar aos elementos que fundaram o humanismo, o iluminismo
e os princípios que edificaram a consciência histórica da modernidade e da
contemporaneidade. Esquivar-se das potencialidades tecnológicas da
contemporaneidade não parece ser a melhor opção. Identifica-se então, um
provável redimensionamento dos valores implícitos na utilização dessas
tecnologias. “O que continua necessário, certamente, é o reexame crítico
destes problemas, com alusão aos valores implicados em cada posição e à relação
destas com o humano. A consciência do humano (que deve fazer parte da
consciência filosófica em qualquer caso) deve ser entre outras coisas,
conhecimento e compreensão da história das situações do viver: do viver como
experiência específica e intransferível” (p.170).“