sexta-feira, 24 de maio de 2013

Alimentação e individualismo: a sociedade moderna e as alterações no processo alimentar



O ser humano sempre se reuniu para as refeições. Desde seus primórdios pré-históricos a alimentação tem um sentido comunitário e, numa boa parte desses encontros, um sentido místico.
O homem é um ser gregário, ou seja, constrói sua vida coletivamente. É um dos poucos animais que no período de crescimento depende quase que totalmente dos adultos. Talvez esse possa ser um dos fatores que contribuíram para essa agregação.
Essa necessidade do coletivo foi o que de fato fortaleceu o crescimento social da humanidade. Obviamente, contando também com sua potencialidade psíquica que possibilitou um maior desenvolvimento do raciocínio e, do que denominamos hoje, de razão. O ser humano é um ser racional. Isso o diferencia de todas as outras espécies existentes no planeta.
A alimentação foi fator de alta relevância no processo de fortalecimento dos aspectos coletivos, gregário e cultural.
A partir do período denominado de renascença, ou modernidade, passamos a ter transformações jamais imaginadas pela humanidade. As mudanças na economia mundial e as transformações e mudanças no ciclo do comércio mundial trouxeram para o mundo ocidental e, posteriormente, pra todos os povos  novas maneiras de relacionamento humano e também novos procedimentos quanto ao com o processo alimentar.
Na idade média, no mundo europeu, as sociedades viviam em grupos. Sociedades pequenas que, ligando-se de povoado a povoado, formavam estruturas culturais que se fortaleciam e se mantinham coesas.
Tanto pobres quanto ricos tinham uma vida coletiva. A alimentação fazia parte fundamental desse processo. Nos feudos havia festas, rituais, casamentos e outros tipos de ritos de passagens que sempre incluíam a alimentação. No clero e na nobreza, davam-se as mesmas situações; nas grandes festas, grandes eventos, a alimentação estava lá presente como fator agregador.
Dessa forma, a alimentação estava atrelada à convivência social. Normalmente, à alimentação, agregam-se fatores culturais, sociais e religiosos. Para tanto, em todo desenvolvimento do período medieval, a alimentação inseria-se na maneira coletiva de se organizar a sociedade.
Nas Américas também se dava dessa forma. As conquistas e migrações dos povos ameríndios eram também influenciadas pela necessidade da alimentação. Não havia o conceito de individuo, de individual. Um índio não era um índio, ele era sempre a sua tribo. Até hoje, as tribos que sobreviveram às transformações das Américas ainda preservam esse sentido coletivo.
A mesma situação se deu em regiões como China, Austrália, Índia e outras partes do mundo. A alimentação sempre teve forte relação com a convivência. As questões eram sempre coletivas, se davam assim na vida religiosa, na vida político-social e na religião. A dimensão da existência era coletiva e sempre partilhada através dos hábitos alimentares.
O enfraquecimento do poder das forças que sustentavam o período  medieval (clero e nobreza), principalmente pela exacerbação desse poder, culminou numa contestação social que acabou levando ao surgimento da Reforma, encabeçada por Lutero. Deste momento em diante, as disposições da organização social foi se transformando substancialmente. E, em consequência, o processo de organização da alimentação.
As transformações da sociedade ocidental, a partir da reforma, foram profundas. Lutero questionava o poder centralizador da Igreja. Questionava a maneira desse poder se relacionar com o povo. Fatores que o levaram a partir para uma revisão dos valores que predominavam sua época. Através dessas novas ideias, suscitou-se a aproximação de nobres, pequenos produtores e burgueses que prefeririam um distanciamento do poder da igreja. Suas intenções eram favorecer uma independência entre o Estado e a Igreja.
Podemos afirmar que, com esses acontecimentos, deu-se o início da ideia que temos hoje de individualismos. O indivíduo como centro da vida, seus direitos, sua privacidade e sua liberdade.
Se hoje vivemos uma democracia que se estende por todo o planeta, mesmo rodeada de instabilidades e fragilidades morais, isso se deu em função dessas primeiras contestações.
Destarte essas conquistas não se efetivaram em extensões de profundidade ética. Há contraditórios  de difícil equação. Por um lado conquistamos Estados democráticos que, fortalecidos pelos direitos humanos, tendem, cada vez mais, a cultivar e garantir a independência individual e as necessidades coletivas. Por outro, caminhamos para um individualismo que, identificado com a solidão própria da sociedade de consumo, torna-se nocivo.
Esse é o antagonismo. O individual passa a ter um valor excessivo em detrimentos de experiências coletivas familiares e de fortalecimento de núcleos de convivência sociocultural. A predominância é o indivíduo, entretanto, inserido no mercado de consumo. O que fortalece a sensação de isolamento.
O processo alimentar também se adere a essa condição. A maneira de se alimentar e de se viver o paladar ajusta-se a essa individualização e, consequentemente, também se torna isolada.
A alimentação, que sempre esteve presente na vida social, não tinha valor capital, no sentido de se buscar o lucro desse produto. O trabalho era para se alimentar, o excedente era guardado. Com as transformações da relação do homem com seu meio de produção, aquilo que ele fazia para sua sobrevivência deixa de ter valor e apenas uma parte de seu trabalho, a parte que é comprada como trabalho assalariado, que possa render lucro para o produtor, é que será reconhecida.
Com isso a sociedade também muda sua maneira de se relacionar com a alimentação. O alimento já não será resultado consequente da produção da vida, mas será conquistado na mesma proporção em que o trabalho for vendido, ou seja, quando se tem emprego, se tem o alimento e, inversamente, quando não se tem um, não se tem o outro.
Diante dessa condição, a alimentação, gradativamente, vai tomando dimensões também individuais. Como o trabalho passa a não ter mais o sentido de manutenção da coletividade e sim do próprio individuo em particular, ou, no máximo, de sua própria família, os laços de unidade coletiva também diminuem.
Com o crescimento do capitalismo, a alimentação passa a incorporar outra configuração. Sua potência comercial expande-se e o alimento que estava vinculado aos fatores regionais, culturais e religiosos vai ser objeto de intenções comerciais. As refeições, que tinham o sentido de unir a família ou os grupos sociais, passaram a ser, unicamente, um mecanismo de manutenção da vida para que a pessoa pudesse continuar trabalhando.
A transformação da alimentação em produto de consumo induziu a sociedade a uma forma individualista de se alimentar. Hoje, nos grandes centros, as pessoas se alimentam com rapidez, sem cuidado nutricional, em quantidades desproporcionais às necessidades orgânicas, gerando sérios problemas de saúde.
Nas sociedades urbanas, é mais comum vermos pessoas isoladas se alimentando em shopping-centers e restaurantes de serviço rápido, do que uma família, em suas casas, reunida em volta de uma mesa.
A sociedade atual alimenta-se só. Produz seus alimentos só. Compra pronto, enlatado, ensacado e preparado. Como a necessidade do consumo é mais percebida que a necessidade de convivência, favorece-se o isolamento alimentar e fortalece-se o afastamento entre as pessoas. Isso é uma pena!