sábado, 23 de março de 2013

POEMA: OS TRÊS CARECAS


OS TRÊS CARECAS


Homens de um passado
que fazem um mundo sem tempo

0 1º Careca

Seus olhos, aquele olhar comum
Suas mãos, o trabalho comum, cotidiano
Seus passos, um andar comum
Um sorriso, talvez
Uma lágrima

O 2º Careca

As mãos, de quem espera, comuns
Os pés, feios pela secura do tempo
Quantos dentes...
Algumas cicatrizes
Algumas esperanças

O 3º Careca

Um pouco magro, pela idade
Certamente não é aquilo que aparenta ser
Seus olhos, suas mãos, seus passos
Os dentes não disfarçam a tenacidade
de um sorriso.

Os três Carecas

Muitos não os viram
Assim passa quem se desfaz no tempo
A carícia os cobriam
A ternura lhes permitiam um sorriso
O caráter da fronte é o que lhes referenciavam

Os três.
Nenhuma parte.
Carecas, sem pêlo, sem roupas, sem nada
Um sorriso, algumas cicatrizes
Os dentes não disfarçam a tenacidade

POEMA: Máculas da Alma


Máculas da Alma


                                         
“...assim me torno eu próprio a humanidade;
e se ela ao cabo perdida for, me perderei com ela.”

                                          Goethe




O que macula a alma não é a dor daquilo que não realizamos,
mas o desejo constante e incontido que, do âmago,
transforma-se em febre e destrói nossos sonhos.
O contato com a realidade de coisas mutáveis e insustentáveis.
Frígidas lâminas nos tornam frágeis
e decepam os mais puros desejos e os mais primitivos suspiros.
Irreconhecíveis a nós mesmos!
Nos odiamos se os despertamos ou paralisamos os atos públicos de condenação.
Todos possuem e compartilham olhares comprometedores,
mas, passíveis ao cotidiano fosso das cidades, ausentam-se,
ilham-se nas multidões frustradas que se aderem a uma falsa sensação de comunidade universal.
Não sentem, nem vivem!
No temor latente da aglomeração das tensões, preferem o plástico, o flexível.
Cegam-se!

Em mim toda dor e todo sofrimento se intensificam.
Recolho-me ao que é nato e inato, sem ser redentor,
sem ao menos almejar um possível ato heroico.
Amo o mundo e os homens,
amo-os por mim e por eles.
Ainda que odiá-los seja uma propriedade da minh'alma,
é meu desejo amá-los.
Carrego todos os sentimentos
e ouço suspiros temerosos de que as sombras possam ser a eternidade de meus dias
e minhas noites uma escuridão, um betume.
Isso o betume!
Quem sabe o betume do barro preto...
que nos remete à leve sensação de um retorno ontológico, um lócus,
à fonte emergente  donde brotou o ánthropos.
Preservarei o que há de primitivo, de elementar e de fecundo
para que do inescrutável, do intangível e da culpabilidade irremediável, possa fluir,
como um regato intermitente,
a outra face,
o oculto,
o imperceptível,
aquilo que ainda não foi dito.


Curvo-me ao tempo...
Satisfaço-me em não recorrer aos quantificáveis.
Este é o tempo do incalculável, da não metrificação,
tempo dos fluídos insolidificáveis.
Não há retorno, nem volta!
Ao olhar, cabe-lhe tudo, todos os espaços.
Aos passos, serve-nos caminhar adiante.
Recorro ao barro para compreender o sentido das edificações
e aos oleiros para me impregnar do deleitoso desejo de construir

No inescrutável tateio os eternos limites do saber temporal.
No intangível assento-me na possibilidade de uma atitude expansiva e abrangente,
ainda que se apresente como paradoxal.
Na culpabilidade irremediável,
encontro a angustiante sensação de que algo já poderia ter sido feito

Seguir é o que nos oportuniza. Este é o tempo!
Há uma temeridade, uma nebulosidade que circunda nossos olhares.
A mácula da alma tende a nos atrofiar, a ferir nossos ossos,
a nos tornar pedintes e recorrentes de uma fé que mais purga que liberta.
Se ao tempo sou súdito, rebelo-me contra a submissão de um homem por outro.
Há multiplicidade, há compartimentalização, há códigos indecifráveis,
mentalidades geneticamente cibernetizadas.
Mas há olhares, há homens, mulheres, crianças que todos os dias saem pelas ruas,
cães que vasculham os cantos das cidades,
as mãos ainda se entrelaçam e os braços enamorados se envolvem nas noites de frio.
Há almas maculadas, como a minha,
que se entristecem em ver
tantos vivos, quase mortos;
tantos sorrisos, quase tristes;
tantos sonhos, quase pesadelos.
Mas que seguem adiante,
ora cabisbaixo, ora numa alegria utópica e transbordante,
às vezes infantil.
Mas que prefere caminhar
ao invés de sorrir os sorrisos tele-enviados pelas megas inteligências que querem
uma impossível homogeneização.

Nisso eles se fragilizam e nós nos fortalecemos.





Walter Fajardo


23 de junho 2003

Aos colegas e professores do mestrado da UNEB que, com muita luta e esforço, fazem da sensatez e da perseverança a trilha de uma nova (ou velha) possibilidade.


RESENHA


BERMAN, Marshal. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. Introdução: Modernidade – Ontem, Hoje e Amanhã. São Paulo: Editora Schawarcz Ltda, 1995, p. 15-35.


            “Ser moderno é encontrar-se em um ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento, autotransformação e transformação das coisas em redor – mas ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos. A experiência ambiental da modernidade anula todas as fronteiras geográficas e raciais, de classe e nacionalidade, de religião e ideologia: neste sentido, pode-se dizer que a modernidade une a espécie humana. Porém, é uma unidade paradoxal, uma unidade de desunidade: ela nos despeja a todos num turbilhão de permanente desintegração e mudança, de luta e contradição, da ambigüidade e angústia. Ser moderno é fazer parte de um universo no qual, como disse Marx: tudo que é sólido desmancha no ar”.
            Assim Marshal Berman dá in início à introdução deste significativo livro sobre a modernidade. Suas perspectivas, se por um lado evidencia uma profunda crise dos sistemas que integram a vida na contemporaneidade, por outro abre uma janela, uma esperança voltada para o reencontro das teorias que fundaram e aprofundaram a modernidade: Marx e Nietzche.
            Três fases iram integrar a modernidade. A primeira fase vai do início do século XVI até o fim do século XVIII, período em que as pessoas estão ainda experimentando os primeiros aspectos da modernidade. A segunda fase configura-se como uma “era revolucionária”, “convulsões em todos os níveis de vida pessoal, social e política” (p.16). Tendo com maior marco a Revolução Francesa. E, como terceira fase, o século XX, onde a fragmentação leva a uma desintegração social, a um sentimento niilista da realidade, um momento em que se “perdeu contato com as raízes de sua própria modernidade” (p.17).
            Rousseau preconiza o termo modernidade, ao mesmo tempo em que será a maior fonte das conceituações da modernidade, “do devaneio nostálgico à auto-especulação psicanalítica e à democracia participativa” (p.17). Os estados nacionais se fortalecem, as multinacionais se multiplicam , os movimentos de massa e de trabalhadores jamais se tornou tão intenso. Tudo é possível, tudo se alcança, menos a “solidez e a estabilidade”.
Marx e Nietzche deram o prenuncio deste tempo. Identificaram com excessiva nitidez os paradoxais caminhos que se apresentavam. Mesmo tendo seus presságios nas sociedades do séc XVI, somente as partir do séc XVIII seu poder se intensificará chegando à complexa sociedade contemporânea. O primeiro, percebendo a turbulência social e o total descrédito que a produção industrial apresentava, concentrou-se numa intenção específica de mudanças radicais na objetivação de “destronar a burguesia” na instauração de uma nova ordem humanística. O segundo, enxergando, neste período, uma profunda crise de paradigmas, onde a moralidade se desfazia e se desintegrava e o niilismo se tornava a tônica da vida, deposita seu crédito num novo homem, num homem reestruturado, “o homem do amanha e do depois de amanha”.
Nosso tempo experimenta uma modernidade peculiar, se por um lado nos encontramos numa profunda crise de valores e de sentido de vida, por outro houve, e ainda há, uma vasta produção artística e criativa que nos insere em perspectivas jamais observadas. O que faz com que se efetive uma bipolarização de visão, pois ou a “modernidade é vista com um entusiasmo cego e acrítico ou é condenada segundo uma atitude de desencantamento e indiferença neo-olímpica; em qualquer caso, é considerada como um monolito fechado, que não pode ser moldado ou transformado pelo homem moderno” (p.24).
As contradições se intensificam na retórica discursiva. Os futuristas, frios e calculistas, integram a vida à produção e à perspectiva de uma sociedade informatizada e sistematizada ciberneticamente. Weber vai criticar esta frieza e a falta de sensibilidade dessa sociedade expansivista. Foucault descortina uma sociedade sedimentada na organização e na disciplina – sociedade disciplinar.
Tendo chegado a uma crise profunda durante os anos 60, Bermam localiza então, três tendências que circundaram esse período: uma afirmativa, outra negativa e uma terceira que denominou de ausente. Neste último “a adequada relação entre arte moderna e vida moderna veio a ser a ausência de qualquer relação” (p.29). “O modernismo aparece, desse modo, como uma grande tentativa de libertar os artistas modernos das impurezas e vulgaridades da vida moderna” (p.29). Como negação o modernismo “busca a violenta destruição de todos os nossos valores e preocupa muito pouco em reconstruir os mundos que põe abaixo” (p.29) Como afirmativo desenvolveu-se um modernismo pop, que, apesar de suas inovações e intensidades criativas, não apresentou alternativa de um caminho a ser seguido.
Portanto, nos anos 60 buscou-se uma atualização, mas, na ausência de perspectivas de mudanças e de reencontros, deságua-se no niilismo dos anos 70, configurado pela sociedade disciplinar de Foucault.
Para escapar dessa desesperança Bermam propõe que retomemos as raízes do modernismo. “O argumento básico deste livro é, de fato, que os modernismos do passado podem devolver-nos o sentido de nossas próprias raízes modernas, raízes que remetem a duzentos anos atrás. Eles podem ajudar-nos a conectar nossas sociedades radicalmente distintas da nossa – e a milhões de pessoas que passaram por isso há um século ou mais” (p. 34).  O autor concentra-se na intenção de um retorno aos autores do século XIX para um seguimento aperfeiçoado no século XXI. “Esse ato de lembrar pode ajudar-nos a levar o modernismo de volta às sua raízes, para que ele possa nutrir-se e renovar-se tornando-se apto a enfrentar as aventuras e perigos que estão por vir” (p.35).